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Direitos, Lutas e Políticas Públicas – os desafios reais de famílias atípicas e pessoas com autismo em Rondônia

Em Porto Velho, mães denunciam falhas na rede pública e dificuldade de acesso a terapias. Pessoas autistas também relatam os desafios de conviver com o diagnóstico em uma sociedade que ainda compreende pouco o espectro.

Por Alisson Branco e e Beatriz Ribeiro

 Fotografia colorida. Uma criança segura um caderno aberto sobre a mesa. Na página, há um desenho de um pato pintado de amarelo, com contorno preto e bico verde. Abaixo da imagem, a criança escreveu com lápis: "PATO AMARELO". Ao lado do caderno, há tampinhas com letras feitas de papel e plástico. A mão da criança aparece segurando um lápis azul.
Criança realiza atividade pedagógica com apoio visual e motor, utilizando desenho de pato e escrita de palavras. A prática faz parte de estratégias de estimulação desenvolvidas em atendimentos voltados ao público com Transtorno do Espectro Autista

Em Rondônia, o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA) ainda é marcado por longas esperas, dificuldades no acesso à saúde e, em muitos casos, batalhas judiciais para garantir direitos básicos. Milhares de famílias brasileiras enfrentam obstáculos semelhantes para assegurar atendimento adequado nos serviços públicos de saúde e educação.

Na capital Porto Velho, estima-se que existam entre 1.800 e 1.900 pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), com base na aplicação de dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) à população local. Para facilitar o acesso a serviços e garantir prioridade no atendimento, a Prefeitura tem emitido a Carteira Municipal de Identificação do Autista (CMIA). Já na rede estadual de ensino, segundo a Secretaria de Estado da Educação (Seduc), mais de 2.600 estudantes com autismo estão matriculados e recebem Atendimento Educacional Especializado (AEE).

Apesar dessas iniciativas, mães denunciam falhas recorrentes na rede pública. Além disso, pessoas autistas também relatam os desafios diários de conviver com o diagnóstico em uma sociedade que ainda compreende pouco a complexidade do espectro.

Dados globais reforçam o tema. Segundo o CDC, uma em cada 36 crianças no mundo está dentro do espectro autista. No Brasil, o Ministério da Saúde estima que existam mais de dois milhões de pessoas com TEA — número que pode ser ainda maior devido à subnotificação. De acordo com levantamento da Revista Autismo (2023), cerca de 61% das famílias relatam dificuldades no acesso a atendimento especializado, e quase metade precisou recorrer à Justiça para garantir direitos básicos, como matrícula escolar ou a presença de mediadores.

Diagnóstico e desigualdade no acesso

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por déficits persistentes na comunicação e na interação social, além de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades. O termo “espectro” reflete a ampla heterogeneidade clínica da condição, com diferentes níveis de necessidade de suporte. A identificação é feita clinicamente com bases nos critérios estabelecidos pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5 (American Psychiatric Association, 2013). Embora o reconhecimento idealmente ocorra na infância, ele muitas vezes é tardio, especialmente em regiões com baixa cobertura de serviços especializados.

Joana dos Santos, mãe de Gabriel, de 10 anos, relata o processo de diagnóstico: “O Sistema Único de Saúde (SUS) demorou tanto que optamos por atendimento particular, em um hospital popular. Quando veio o diagnóstico, chorei. Mãe sofre por antecipação”, desabafa.

Mesmo com o laudo em mãos, o caminho continuou difícil. Foram necessárias consultas com três neurologistas, reavaliações e a contratação de um plano de saúde privado. Gabriel, diagnosticado com autismo nível 1, hoje apresenta bom desenvolvimento graças às terapias que recebe desde os quatro anos. Mas Santos faz um alerta: “Nem todas as crianças têm esse acesso. Terapia é vida, e isso deveria ser garantido pelo Estado”, conclui a mãe.

A situação se repete, com variações, em diferentes lares. Silvana Ferreira, mãe de Ygor, de 6 anos, vivenciou uma trajetória marcada por preconceito, desinformação e negligência. “Só consegui terapias depois de acionar o Ministério Público. E, mesmo assim, ainda aguardo retorno com o neurologista há mais de seis meses”, relata.

Marcela Gusmão, também mãe atípica, enfrenta outro desafio: acessar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), um direito previsto em lei. “Mesmo com laudo e necessidade, estamos há meses tentando via Justiça. É desgastante.”

Apesar das dores comuns, as histórias também compartilham força. “Participo de eventos, leio muito. Essas conexões ajudam a não nos sentirmos sozinhas”, diz Joana.

O papel das associações e das escolas

Fotografia colorida. Mesa branca com diversas atividades pedagógicas organizadas. Do lado esquerdo, há cartazes ilustrativos com as letras B, C, D, F e J acompanhadas de desenhos (bola, casa, dado, foca e jacaré) e tampinhas com letras formando as palavras correspondentes. Ao centro e à direita da imagem, há peças de quebra-cabeça — algumas já montadas formando o desenho de uma vaca, outras ainda soltas — sendo manipuladas por uma criança. Acima, há também cartões ilustrados com palavras e figuras. A cena acontece em ambiente escolar.
Atividade de estimulação cognitiva e motora com pintura e escrita espontânea. Estratégias visuais e sensoriais favorecem a fixação de conteúdos e o engajamento de crianças com TEA nos primeiros anos escolares

As associações têm desempenhado um papel importante de acolhimento e mobilização. Tamires Gomes Ferreira, coordenadora da Associação de Famílias Atípicas de Porto Velho, relata que as principais demandas que chegam à entidade são por terapias e medicações.

A atuação do grupo envolve denúncias direcionadas a parlamentares e órgãos públicos, além da realização de ações em bairros da periferia. “Muitas famílias não têm acesso à internet nem à televisão. Precisamos levar a informação até onde ela ainda não chegou”, pontua Ferreira. Segundo ela, a associação também busca manter um diálogo constante com o Ministério Público e o Tribunal de Justiça — nem sempre com resultados imediatos, mas com avanços pontuais.

Na Escola Estadual Abnael Machado de Lima, que atende alunos com deficiência, o psicólogo Amaury Moraes descreve o cenário da inclusão como desafiador. “As metodologias convencionais não contemplam as necessidades de muitos alunos com TEA, especialmente nos níveis 2 e 3 de suporte. Há barreiras pedagógicas e comportamentais que dificultam o processo de aprendizagem”, explica.

A escola oferece Atendimento Educacional Especializado (AEE) e conta com cuidadores e transporte adaptado. “Temos 25 alunos com autismo matriculados, e esse número vem aumentando. O envolvimento das famílias também é um desafio: nem sempre os pais conseguem participar dos espaços de escuta. A escola já recebeu apoio pontual do MP e do TJ, mas ainda busca parcerias mais duradouras”, aponta Amaury.

O Ministério Público e a cobrança por estrutura

O Ministério Público de Rondônia (MPRO) reconhece a importância de sua atuação diante do vácuo deixado pelo Estado. A assessora de comunicação, Maríndia Moura, explica que as promotorias têm instaurado procedimentos administrativos para acompanhar o fluxo de atendimento às crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Segundo ela, o Plano Estadual da Pessoa com Deficiência apresenta propostas para fortalecer a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência entre 2024 e 2027. O maior gargalo, afirma, está na ausência de equipes multidisciplinares no serviço público. 

“As famílias acabam recorrendo à Justiça, o que gera sobrecarga emocional e atrasos no cuidado”, resume Maríndia Moura.

A assessora destaca ainda que o MP tem investido em ações educativas, como cursos de educação inclusiva e projetos voltados ao mapeamento das condições da educação especial no estado. Famílias que enfrentam violações podem acionar o órgão presencialmente ou por meio da Ouvidoria, que também oferece atendimento em Libras.

A visão da pessoa autista

Leonardo Vieira Mota Castro, 22, diagnosticado com autismo grau 2, compartilha os desafios de conviver com o diagnóstico. 

“No começo foi um choque. Levei um tempo para processar. Muitas pessoas mudaram comigo, passei a me sentir um inválido. Mas também encontrei quem me apoiasse”, desabafa Leonardo Vieira Mota Castro.

Castro relata episódios de preconceito na escola e na igreja. “Na escola, colegas se afastaram quando souberam. Na igreja, senti olhares de desprezo. Me esforço para mostrar meu valor, mesmo que alguns não queiram ver”.

O jovem também enfrenta dificuldades para acessar apoio psicológico e terapias. “Não tenho recursos para atendimento particular. Muitas vezes, falo com Deus. É meu jeito de desabafar.”

Apesar das adversidades, encontra motivação nos estudos. “Tirei meus primeiros 10 recentemente. Essa é minha maior conquista.”

Mulher jovem de cabelos escuros e pele clara sorri em um estúdio com fundo cinza. Ela veste blazer amarelo, blusa verde escura e calça bege com listras. Na mão direita, segura um laço colorido com estampa de peças de quebra-cabeça — símbolo do autismo. Ela transmite simpatia e acolhimento.
Médica Ingria Yohana, nível de suporte 1, diagnóstico tardio aos 22 anos, atualmente com 25 anos

A médica Ingria Yohana, por sua vez, traz a perspectiva de quem vive os dois lados: profissional da saúde e pessoa autista. Diagnosticada com autismo nível 1 de suporte aos 22 anos, hoje, aos 25, relembra os obstáculos enfrentados até concluir a faculdade de medicina. “Desde o início da vida adulta, tive muitas dificuldades para lidar com o novo, ambientes desconhecidos e desenvolver independência. As comorbidades vieram antes do diagnóstico — ansiedade, fobias, depressão — e eu só fui entender a origem disso tudo muito depois”, conta.

Ela relata episódios de pânico durante o internato médico, especialmente ao atender pacientes sozinha ou enfrentar ambientes de alta pressão. “Eu me sentia uma fraude por não conseguir desempenhar como meus colegas. Passei a ser vista como tímida, avoada, distante. Mas era muito mais do que isso. O diagnóstico me deu respostas”, pontua.

Na atuação profissional, Ingria destaca a sensibilidade como diferencial. “Sinto tudo de forma intensa. Já ouvi de pacientes que nunca tinham sido atendidos com tanto cuidado. Acho que minha visão empática é, na verdade, meu maior diferencial”.

Atualmente, ela atua em clínica de dor e na medicina endocanabinoide, áreas que também dialogam com o autismo. “Encontrei um lugar onde posso ajudar pessoas como eu. Já passei por diversas consultas e tratamentos frustrantes. Eu entendo a dor de verdade, e isso cria um vínculo diferente com quem atendo”.

Sobre a percepção social do autismo, é enfática: “Há muita desinformação, inclusive dentro da medicina. O autismo em adultos é invisibilizado. Na faculdade, só tive contato com o tema em aulas de pediatria e psiquiatria infantil. Como se a criança autista não crescesse”.

Ela também critica o uso de estereótipos: “Ouço muito que ‘não pareço autista’, como se houvesse um único jeito de ser. A diversidade dentro do espectro é imensa e precisa ser respeitada.”

Direitos previstos, realidade parcial

Apesar dos avanços legislativos — como a Lei nº 12.764/2012, que reconhece a pessoa com autismo como pessoa com deficiência e garante o acesso à educação, saúde e transporte — o preconceito e a desinformação ainda marcam a rotina de famílias e indivíduos dentro do espectro. Mães atípicas relatam o constante enfrentamento de falas capacitistas e a invalidação das emoções de seus filhos, além da necessidade de se tornarem especialistas em direitos para garantir o básico. Pessoas com TEA também compartilham experiências de exclusão social e de invisibilidade, muitas vezes agravadas pela falta de compreensão sobre a diversidade que o espectro representa. A vivência dessas famílias, marcada por burocracias, lutas judiciais e resistência, evidencia que a legislação existe, mas sua aplicação plena ainda é um desafio cotidiano.

Para mães como Joana, Marcela e Silvana, o cansaço é constante, mas a luta também. “Eu só queria que respeitassem nossos filhos como eles são e entendessem que o lugar deles é onde eles quiserem estar”, destaca Joana.

Ela ressalta que, enquanto a sociedade não entender que inclusão não é favor, e sim um direito, a luta de milhares de famílias continuará sendo travada todos os dias — nas filas do SUS, nas portas das escolas, nos gabinetes do Judiciário. E, mais importante, nos corações e mentes de quem escolhe enxergar o autismo com empatia, não com medo.

A Dra. Ingria Yohana defende que as políticas públicas considerem todas as fases da vida. “Hoje, o foco está quase exclusivamente na infância. Mas o autista cresce, precisa estudar, trabalhar, viver com autonomia. Isso exige acolhimento, adaptações e escuta real — feita com a participação de quem vive o espectro, não só de quem observa de fora”, finaliza.

 

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