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Desafios e esperança: pessoas trans e travestis relatam vivências e desafios na capital

Relatos expõem desigualdade, resistência e a busca por reconhecimento e dignidade em Rondônia.

Por Gabriel Moreira, Gian Vitor e Jorge Fernando

Fotografia colorida mostra uma mesa de conferência com cinco pessoas sentadas e uma pessoa em pé ao fundo, operando um notebook em um púlpito. O ambiente parece ser um auditório ou sala de reuniões. No centro da mesa, uma pessoa com camiseta branca com símbolos LGBTQIA+ e uma fita no pescoço está falando em um microfone. A mesa está coberta com uma toalha branca, sobre a qual está colocada uma bandeira do orgulho LGBTQIA+ (com faixas azul, rosa, branca, vermelha, laranja, amarela, verde e roxa).
A ausência de políticas públicas é um dos principais desafios enfrentados pela comunidade no estado de Rondônia (Foto: Comcil)

A identidade de gênero desempenha um papel fundamental na vida de todo indivíduo. No entanto, para muitas pessoas transgênero, a jornada de autoconhecimento pode ser permeada por diversos obstáculos. Um deles é o preconceito.

Bernardo Souto, 20, entregador, e Bianca Oliveira, 21, caixa, compartilham uma experiência comum: a falta de apoio e aceitação por parte da família. “Acho que o maior desafio, no geral, é a aceitação da família. Assumir a própria identidade é, na maioria das vezes, se deparar com o preconceito, muitas vezes vindo de quem deveria ser nosso principal apoio”, explica Bernardo. Bianca também vê isso como uma realidade frequente entre as travestis. Para ela, os problemas começam dentro de casa, onde muitas vezes enfrentam situações dolorosas e desafios constantes.

Bernardo ainda relata uma experiência de preconceito ao tentar retificar seu nome. “Quando fui fazer a alteração do meu nome, as pessoas que me atenderam não questionaram os meus pronomes. Eu tive que me apresentar com meu nome social e pedir para que me chamassem pelo ‘ele/dele’, mas, mesmo assim, insistiram em usar os pronomes errados”, conta.

Bianca passou por uma situação semelhante, quando um colega de trabalho a desrespeitou ao usar o pronome errado. Para ela, essa foi uma das piores experiências de desrespeito que já enfrentou, especialmente dentro de um ambiente profissional.

A fotografia colorida retrata um jovem sentado em uma cadeira. Ele segura um pitbull de cor marrom em seu colo, enquanto o acaricia. Ao fundo, uma parede de cor branca. O jovem usa uma camisa de cor escura e uma bermuda de cor cinza.
Bernardo relata que os principais problemas enfrentados por ele são a falta de apoio e a aceitação por parte da família
Foto: arquivo pessoal

Você é expulsa de dentro do seu lar por seus pais, que deveriam cuidar de você. Na vida você aprende a se defender de ofensas, ataques e xingamentos”, relata Bianca.

A psicóloga e pós-graduada em saúde mental, Brenda Sabrina, explica que o apoio da família desempenha um papel crucial para o desenvolvimento e a construção da autoestima dos jovens. Ela diz que é de extrema importância que jovens transgêneros tenham a oportunidade de serem aceitos e amados por suas famílias da mesma forma que qualquer outra pessoa. A profissional também destaca a relevância de acompanhamento nesse processo.

“É crucial que pessoas trans tenham acesso a psicólogos e profissionais de saúde  mental por diversos motivos. Primeiramente, a transição de gênero pode ser um processo complexo e desafiador, e ter apoio psicológico pode ajudar a lidar com as questões emocionais e psicológicas que surgem durante esse período”, afirma a psicóloga.

Para a especialista, a falta de apoio familiar, um desafio substancial e frequentemente devastador, coloca os jovens em situações difíceis. As implicações para a saúde emocional e bem-estar são profundas e preocupantes. É imperativo que a sociedade e as redes de apoio reconheçam plenamente esses obstáculos e se comprometam a criar ambientes mais inclusivos e acolhedores para todos, independentemente de sua identidade de gênero. “É notável que grande parte do preconceito enfrentado pelas pessoas transgênero provém até mesmo de seus próprios familiares”, comenta Brenda. 

A psicóloga explica que o suporte é crucial no processo de avaliação para procedimentos médicos, como a terapia hormonal ou cirurgias de redesignação sexual. Ambas partes importantes da jornada de algumas pessoas trans. 

Para Bernardo, o tratamento hormonal é uma parte essencial da transição de gênero de muitas pessoas transgênero. Ele é fundamental para a mudança das características físicas, alinhando-as à identidade de gênero da pessoa. No entanto, ele destaca que nem todas as pessoas trans optam por seguir esse caminho, e a decisão é extremamente pessoal.

Sobre os desafios da transição, Bianca reflete: “É difícil listar todas as questões, porque a transição envolve uma série de complicações, não apenas no começo, mas ao longo de todo o processo. Eu mesma tive dificuldade de me aceitar. Só depois de me conhecer melhor, de entender tudo isso, percebi que não havia nada de errado comigo. Já para Bernardo o início do tratamento hormonal também foi complicado, embora hoje haja mais apoio e informações a respeito”.

Para outro jovem, que não quis se identificar, o sentimento é que, em Rondônia, falta visibilidade para pessoas trans. “Acredito que essa falta não seja só de conhecimento entre algumas pessoas, mas também o pensamento preconceituoso de grande parte das pessoas. Quando me assumi trans, em todos os âmbitos da minha vida, houve muita dificuldade de aceitação das pessoas comigo”, desabafa.

Além disso, ele relata que sente falta de capacitação de alguns profissionais para lidar com o assunto. “Como estudante de psicologia, só percebi cada vez mais a falta de capacitação e manejo que muitos profissionais possuem. Fui fazer a retificação do meu nome e quem me atendeu nem questionou meus pronomes. Tive que pedir para que me chamasse por ele/dele. Mas a pior coisa que me aconteceu foi quando comecei a questionar meu gênero e a minha antiga psicóloga ficava falando que eu era uma mulher lésbica”, relembra.

Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2024 o Brasil registrou ao menos 57 casos de tentativa de homicídio contra travestis e mulheres trans. Nos anos anteriores, os números foram os seguintes: 69 tentativas em 2023, 84 em 2022, 79 em 2021, 77 em 2020, 50 em 2019, 72 em 2018 e 58 em 2017.

Gráfico exibe o número de tentativas de homicídio contra travestis e pessoas trans no Brasil entre 2017 e 2024. Os dados mostram oscilações ao longo dos anos, com pico em 2022 e queda significativa em 2024, retornando ao patamar de 2017.
No último ano, houve uma queda significativa de tentativas de homicídio contra travestis e pessoas trans no Brasil. Gráfico: Gabriel Moreira  Dados: Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

 

Imagem de um mapa digital interativo da América do Sul, com foco no Brasil, exibindo a distribuição geográfica dos assassinatos de pessoas trans, conforme levantamento da ANTRA (2017). Cada ponto roxo no mapa representa um caso registrado. À esquerda, há uma legenda classificando os assassinatos por identidade de gênero e região. O título acima do mapa diz "Mapa da Cartografia Digital Desenvolvido pela ANTRA". No canto inferior, há o link "www.morcegada.unir.br" e o crédito “Mapa dos Assassinatos Trans/ANTRA 2017”.
Desenvolvido pela Antra, o mapa registra 179 assassinatos até 31 de dezembro de 2017, revelando a grave situação de violência enfrentada pela população trans em diferentes regiões do país. Fonte: Associação Nacional de Trans e Travestis (Antra).

A ANTRA inovou ao lançar o “Mapa dos assassinatos”, uma cartografia digital interativa que registra dados e geolocalização dos assassinatos de pessoas trans. Essa metodologia, na primeira edição do Dossiê, se tornou referência e foi adotada por outras pesquisas similares.

Gráfico. Os números na cor preta e barras em rosa exibem o número de homicídios contra pessoas trans no Brasil entre 2008 e 2024. Os dados mostram oscilações ao longo dos anos, com pico em 2017 e menor número em 2008, com média de 125 assassinatos.
Assassinatos de pessoas trans no Brasil entre 2008 e 2024.  Arte: Gabriel Moreira.

 

A ATUAÇÃO DA COMCIL EM PORTO VELHO

A fotografia mostra um evento formal sobre diversidade e inclusão. À direita, há uma mesa longa com nove pessoas sentadas, representando diferentes áreas ou instituições. A mesa está coberta por bandeiras do orgulho LGBTQIA+ e transgênero. À esquerda da imagem, uma mulher em pé fala ao microfone, voltada para a plateia. Ela está usando uma blusa escura e uma saia listrada. Na plateia, algumas pessoas assistem atentamente, enquanto uma delas registra a fala com uma câmera. Ao fundo, há um projetor exibindo uma apresentação na parede.
A Comcil aborda temas essenciais com foco na quebra de estigmas e na valorização da diversidade.  Foto: Comcil.

Desde 2012, a Comunidade Cidadã Livre (Comcil) desenvolve uma série de iniciativas voltadas à população LGBTQIA+ em Porto Velho. A Comcil promove palestras e debates com foco na quebra de estigmas e na valorização da diversidade, abordando temas essenciais como inclusão familiar, acesso à educação e à saúde, empregabilidade e direitos da população LGBTQIA+ idosa, especialmente travestis, mulheres transexuais e homens trans. Além disso, o grupo também estende seu apoio a pessoas cisgênero em situação de vulnerabilidade social.

A coordenadora geral, Karen de Oliveira Diogo, explica como a instituição trabalha dentro do estado de Rondônia. “A Comcil vem atuando no enfrentamento à transfobia e na proteção das vítimas desde 2012, quando ela foi criada. Durante todo este tempo, estivemos trabalhando em parceria com a Defensoria Pública, com o Ministério Público do Trabalho e com o Ministério Público do Estado de Rondônia, levando as denúncias dos casos de transfobias no ambiente escolar, no ambiente familiar, entre outras. Lembrando que o nosso trabalho não é só na questão da transfobia, como também da LGBTfobia e em todas estas outras grandes esferas”, enfatiza.

A coordenadora comenta que a falta de políticas públicas é um grande problema, comparado aos casos de violência. “Conforme o dossiê da Rede Trans de 2024, no último ano nós tivemos dois casos de violência contra pessoas trans em Rondônia. Lembrando que São Paulo continua liderando o índice. Então, quando paramos para pensar sobre a questão da violência contra pessoas trans no nosso estado, eu acredito que a maior violência que nós temos aqui é justamente a falta de políticas públicas de seguridade na educação, começando pela fundamental”, destaca.

“Já existem algumas políticas efetivas, como a Resolução 577 da UNE, que trata das cotas para pessoas trans, e a criação do Comitê Estadual de Saúde LGBTQIA+, que vem pautando temas como educação, empregabilidade, pertencimento e população trans em situação de rua ou do campo”, pontua Karen de Oliveira Diogo.

Ela também menciona que há um grupo de trabalho focado na implantação do Ambulatório Trans e ressalta a importância de políticas específicas no sistema prisional. No entanto, pondera que ainda faltam ações mais amplas e fortalecimento da consciência política dentro do próprio movimento. “É preciso que a população trans compreenda a importância da articulação política e não se limite a pautas que apaguem seu protagonismo. Precisamos também avançar em políticas de saúde, como a hormonoterapia e atendimento especializado para homens e mulheres trans”, finaliza a coordenadora.

 

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