Mulheres feirantes: resistência e recomeço
Na feira, o conhecimento e a luta das mulheres passa de geração em geração
Por Bruna de Paula e Josilene Santos

Em uma manhã de domingo atípica em Porto Velho, encoberta por nuvens de um dia nublado na Feira do Cai N’água, dezenas de mulheres trabalham em suas bancas. Algumas aguardam o primeiro cliente do dia, enquanto ao lado, uma corta um tambaqui com uma faca amolada e faz um barulho estrondoso na mesa. Mais à frente,outras mulheres processam o açaí na hora.São perfis diferentes, mas que enfrentam desafios semelhantes nas feiras da capital.
A feira é um espaço público de comércio popular que reúne mulheres diferentes com realidades semelhantes, sejam elas diaristas, sócias ou donas do seu próprio negócio, superam suas inseguranças e seguem suas vidas. Elas enfrentam problemas diários, desde a falta de infraestrutura e higiene básica até a violência e o calor extremo.
A admiração de uma pela outra é palpável, reconhecem suas histórias umas nas outras. “Com a feira a gente pode recomeçar, é questão de reconhecimento, a minha história nesse lugar é muito nova, mas tem mulheres que chegam às 4h da manhã e montam suas barracas, deixam suas casas e trazem os filhos que ficam dentro de caixotes e até debaixo das mesas dormindo. A minha admiração pelas mulheres aumentou mais ainda com a feira”, conta Gerliane Lima, 36, formada em gestão hospitalar e empreendedora na área de verduras há 5 anos.

O recomeço muitas vezes é um caminho desafiador, mas é com o suor do trabalho e a vontade de vencer, junto com a alegria de cativar a freguesias que Gerliane trabalha com a filha de 12 anos em todas as feiras da cidade, de terça a domingo. na feira que ela viu a chance de ser independente.
“Após uma separação, eu perdi tudo, tive que recomeçar do zero. Hoje, tenho minha casa, carro, gosto muito disso. A feira foi um recomeço. Fui vítima de agressão, quase um feminicídio. Você pode sair de casa, mas o nosso medo é maior se você for mãe. Pelos meus filhos eu peguei meu diploma, coloquei em uma gaveta e foi aqui que tive uma nova oportunidade”, conta Gerliane Lima enquanto arruma as folhas de couve e cheiro verde.

Conforme as horas vão passando, se observar ao seu redor, vai perceber que no meio das propagandas no gogó, das risadas, da muvuca de pessoas, das rodas de conversas entre uma banca e outra, as feiras livres são um ambiente familiar. Os ensinamentos são passados de geração em geração, com um objetivo em comum, o sustento da família.
É na banca de polpa de frutas da Rafinha, nome dado em sua homenagem, que Rafaela dos Santos trabalha ao lado da mãe surda e a poucos metros da avó que, com carinho, também chama de mãe. Rafaela conta que sua família trabalha de terça a domingo e o mormaço presente em todas as feiras é um incômodo. “Nessa feira da Cai N’água nem tanto, por conta da estrutura, mas o calor é um desafio, porque as barracas são de lona e esquentam muito, é muito, mais muito quente mesmo e quando vem a chuva com vento é bem difícil”, conclui.
Gerliane relembra um incidente que a marcou profundamente: A violência nas feiras. “Até saiu em um programa policial, dois carregadores brigaram e quase se mataram, eu vi uma pessoas quase morrendo na minha frente. Eu não estou acostumada com esse tipo de ambiente. E depois ficou tudo normal, aquilo me marcou muito”, detalha.
A batalha diária de uma feirante: entre sonhos e realidade

Foto: Bruna de Paula
Embaixo de uma barraca improvisada de madeira e lona, Eliete Alves de Passos, 60 anos, carrega consigo uma experiência de 25 anos de feira. Ela chegou a Porto Velho no final da década de 1980 com o marido, para trabalhar na mineração. Depois que a mineração fechou,começou a trabalhar na feira. “Foi muita chuva, muito sol, trabalhei grávida na feira, amamentei enquanto atendia os clientes, não me sentia bem, mas era a forma que nós tínhamos para ganhar o sustento do dia a dia”, confessa.
Eliete reduziu a jornada de trabalho nas feiras após seus filhos se formarem e sente orgulho de ter proporcionado uma vida melhor para eles. Ela destaca as dificuldades da vida de feirante, incluindo a falta de estabilidade financeira e o acesso à saúde. “Tem pessoas que nascem aqui e continuam até hoje, nesse sofrimento. O feirante não ganha bem, o sustento não é certo, não podemos pagar um plano de saúde. Quando morre algum feirante, até hoje, pedem ajuda para comprar o caixão. A vida é dura mesmo”, conta.

Foto: Bruna de Paula
A preparação dos produtos se inicia na sexta-feira, para serem vendidos no sábado. No sábado à tarde é retomada, para as vendas de domingo. O transporte é realizado em uma Kombi, Eliete precisa chegar às 4h da manhã para garantir seu espaço na feira “As vezes a gente precisa dormir na feira, para trabalhar no outro dia. É muita batalha, muito medo, se não outra pessoa chega e fica no lugar”, explica. No coração de Eliete vive o sonho de voltar à cidade onde nasceu. “Morar em Minas Gerais, na minha terra, voltar de novo, sou mineira. Meu sonho é voltar para minha terra”,confessa.

Foto: Bruna de Paula
Os feirantes realizam um cadastro na prefeitura e também na associação que os representa, a Associação dos Feirantes de Porto Velho (AFPV). Segundo o Gerente de Escoamento da Produção da Secretaria Municipal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SEMAGRIC), Rubens Nogueira, responsável pela fiscalização das feiras municipais de Porto Velho, atualmente não existem ações voltadas para as mulheres feirantes. O gerente destaca que um dos principais desafios enfrentados na administração das feiras é a ocorrência de brigas por espaços e disputas por preços diariamente, já que cada feirante tem autonomia para definir o próprio valor de suas mercadorias.

As feiras estão espalhadas pelas regiões da cidade, fechando ruas ou avenidas para a sua realização. Por conta disso, os trabalhadores levam sua própria água e apenas a feira de domingo, do Cai N’água, possui banheiro próprio. Nos demais locais são instalados banheiros químicos. Entretanto, nem todas o utilizam.“É difícil para as mulheres. Eu não uso banheiro químico, quando eu chego tá limpinho, mas não há limpeza adequada durante o dia. Prefiro me organizar em casa e levar água e outros itens necessários. Apenas no domingo tem um senhor que a gente paga 2 reais e ele limpa o banheiro”, explica Gerliane Lima.
Depois da pandemia
Segundo o especialista em Economia e professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Otacílio Moreira de Carvalho Costa, o empreendedorismo das mulheres teve um crescimento significativo após a pandemia de Covid-19, com diversas mulheres se tornando a base da renda de sua casa. “A economia enxerga com bons olhos e cada vez mais a mulher tem atuado em todos os espaços. No mundo dos negócios, a mulher tem expertise e mantém a qualidade do produto, tem esse zelo com a higiene, o cuidado com os alimentos que são consumidos ali na própria feira livre, explica o economista.
As mulheres feirantes são exemplos de resistência e superação. Suas histórias são um testemunho da importância do comércio e da produção popular como um espaço para dignidade, recomeço e seguir em frente.