Principal

Mulheres feirantes: resistência e recomeço

Na feira, o conhecimento e a luta das mulheres passa de geração em geração

Por Bruna de Paula e Josilene Santos

Fotografia colorida. Mulher de cabelo liso escuro e usando blusa preta organiza verduras em banca de feira coberta. Na mesa há maços de cheiro-verde, folhas verdes e garrafas plásticas com tucupi. Ao fundo, várias pessoas circulam entre as barracas em um ambiente movimentado.
Feira de verduras aos domingos: produtos frescos.   Foto: Bruna de Paula

Em uma manhã de domingo atípica em Porto Velho, encoberta por nuvens de um dia nublado na  Feira do Cai N’água, dezenas de mulheres trabalham em suas bancas. Algumas aguardam o primeiro cliente do dia, enquanto ao lado, uma corta um tambaqui com uma  faca amolada e faz um barulho estrondoso na mesa. Mais à frente,outras mulheres processam o açaí na hora.São perfis diferentes, mas que enfrentam desafios semelhantes nas feiras da capital.

A feira é um espaço público de comércio popular que reúne mulheres diferentes com realidades semelhantes, sejam elas diaristas, sócias ou donas do seu próprio negócio, superam suas inseguranças e seguem suas vidas. Elas enfrentam problemas diários, desde a falta de infraestrutura e higiene básica até a violência e o calor extremo.  

A admiração de uma pela outra é palpável, reconhecem suas histórias umas nas outras. “Com a feira a gente pode recomeçar, é questão de reconhecimento, a minha história nesse lugar é muito nova, mas tem mulheres que chegam às 4h da manhã e montam suas barracas, deixam suas casas e trazem os filhos que ficam dentro de caixotes e até debaixo das mesas dormindo.  A minha admiração pelas mulheres aumentou mais ainda com a feira”, conta Gerliane Lima, 36, formada em gestão hospitalar e empreendedora na área de verduras há 5 anos.

 Fotografia colorida. Uma mulher de cabelo liso e blusa preta segura duas sacolas plásticas brancas. Uma delas está cheia de limões em cima da uma balança Há uma variedade de frutas e verduras: limão, tomate, pimenta, quiabo, couve e 22 garrafas de tucupi. Ao lado, uma moça de cabelos cacheados e blusa marrom segura uma saca de tela com limões.
Duas gerações trabalhando juntas na feira de verduras.  Foto: Bruna de Paula  

O recomeço muitas vezes é um caminho desafiador, mas é com o suor do trabalho e a vontade de vencer, junto com a alegria de cativar a freguesias que Gerliane trabalha com a filha de 12 anos em todas as feiras da cidade, de terça a domingo. na feira que ela viu a chance de ser independente.

“Após uma separação, eu perdi tudo, tive que recomeçar do zero. Hoje, tenho minha casa, carro, gosto muito disso. A feira foi um recomeço. Fui vítima de agressão, quase um feminicídio. Você pode sair de casa, mas o nosso medo é maior se você for mãe. Pelos meus filhos eu peguei meu diploma, coloquei em uma gaveta e foi aqui que tive uma nova oportunidade”, conta Gerliane Lima enquanto arruma as folhas de couve e cheiro verde.

Fotografia colorida. Uma mulher de cabelos longos e óculos aguarda os clientes em sua banca de polpa de frutas variadas. A imagem está desfocada. A banca tem duas caixas de isopor fechadas e em cima dela vemos onze pacotes de polpa da fruta.
Mulher com óculos espera clientes em banca com pacotes de polpa de frutas, em imagem desfocada.  Foto: Bruna de Paula

Conforme as horas vão passando, se observar ao seu redor, vai perceber que no meio das propagandas no gogó, das risadas, da muvuca de pessoas, das rodas de conversas entre uma banca e outra, as feiras livres são um ambiente familiar. Os ensinamentos são passados de geração em geração, com um objetivo em comum, o sustento da família. 

É na banca de polpa de frutas da Rafinha, nome dado em sua homenagem, que Rafaela dos Santos trabalha ao lado da mãe surda e a poucos metros da  avó que, com carinho, também chama de mãe. Rafaela conta que sua família trabalha de terça a domingo e o mormaço presente em todas as feiras é um incômodo. “Nessa feira da Cai N’água nem tanto, por conta da estrutura, mas o calor é um desafio, porque as barracas são de lona e esquentam muito, é muito, mais muito quente mesmo e quando vem a chuva com vento é bem difícil”, conclui.

Gerliane relembra um incidente que a marcou profundamente: A violência nas feiras. Até saiu em um programa policial, dois carregadores brigaram e quase se mataram, eu vi uma pessoas quase morrendo na minha frente. Eu não estou acostumada com esse tipo de ambiente. E depois ficou tudo normal, aquilo me marcou muito”, detalha.

 

A batalha diária de uma feirante: entre sonhos e realidade

 Fotografia colorida. Uma mulher de cor preta usa um vestido branco e corta com uma faca uma galinha caipira sobre uma tábua de madeira. Na mesa estão quatro galinhas embaladas e cinco sacos de tela com aproximadamente 14 ovos dentro, e do lado uma caixa de isopor branca e quatro sacolas de rede amarela com uma dúzia de ovos em cada.
Tradição e sabor: Galinha e ovos caipira para venda na feira.
Foto: Bruna de Paula

Embaixo de uma barraca improvisada de madeira e lona, Eliete Alves de Passos, 60 anos, carrega consigo uma experiência de 25 anos de feira. Ela chegou a Porto Velho no final da década de 1980 com o marido, para trabalhar na mineração. Depois que a mineração fechou,começou a trabalhar na feira. “Foi muita chuva, muito sol, trabalhei grávida na feira, amamentei enquanto atendia os clientes, não me sentia bem, mas era a forma que nós tínhamos para ganhar o sustento do dia a dia”, confessa.

Eliete reduziu a jornada de trabalho nas feiras após seus filhos se formarem e sente orgulho de ter proporcionado uma vida melhor para eles. Ela destaca as dificuldades da vida de feirante, incluindo a falta de estabilidade financeira e o acesso à saúde. “Tem pessoas que nascem aqui e continuam até hoje, nesse sofrimento. O feirante não ganha bem, o sustento não é certo, não podemos pagar um plano de saúde. Quando morre algum feirante, até hoje, pedem ajuda para comprar o caixão. A vida é dura mesmo”, conta.

Fotografia colorida. Banca de feira com alimentos expostos sobre uma mesa forrada com tecido rosa. À esquerda estão sacolas plásticas transparentes contendo frangos caipiras inteiros e bandejas com ovos. No centro, uma sacola plástica amarela. À direita, aparecem as mãos, braços e parte do tronco de Eliete manuseando um pano branco próximo a uma tábua de madeira escura. Eliete é uma mulher preta e usa uma roupa branca.
Eliete limpa sua banca após o corte da galinha caipira.
Foto: Bruna de Paula

A preparação dos produtos se inicia na sexta-feira, para serem vendidos no sábado. No sábado à tarde é retomada, para as vendas de domingo. O transporte é realizado em uma Kombi, Eliete precisa chegar às 4h da manhã para garantir seu espaço na feira “As vezes a gente precisa dormir na feira, para trabalhar no outro dia. É muita batalha, muito medo, se não outra pessoa chega e fica no lugar”, explica. No coração de Eliete vive o sonho de voltar à cidade onde nasceu. “Morar em Minas Gerais, na minha terra, voltar de novo, sou mineira. Meu sonho é voltar para minha terra”,confessa.

Fotografia colorida. A mão de uma mulher de blusa rosa com um anel no dedo, um relógio no braço e uma bolsa preta. entrega dinheiro para um homem de camisa vermelha. o centro da imagem há uma caixa de isopor com 10 pacotes de polpa de fruta. Ao fundo, desfocada, outra feirante está sentada atrás de uma caixa de isopor.
Venda de polpas de frutas naturais na feira livre.
Foto: Bruna de Paula

Os feirantes realizam um cadastro na prefeitura e também na associação que os representa, a Associação dos Feirantes de Porto Velho (AFPV). Segundo o Gerente de Escoamento da Produção da Secretaria Municipal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SEMAGRIC), Rubens Nogueira, responsável pela fiscalização das feiras municipais de Porto Velho, atualmente não existem ações voltadas para as mulheres feirantes. O gerente destaca que um dos principais desafios enfrentados na administração das feiras é a ocorrência de brigas por espaços e disputas por preços diariamente, já que cada feirante tem autonomia para definir o próprio valor de suas mercadorias.

Gráfico de barras na cor roxa, com fundo lilás, que mostra a quantidade de feirantes cadastrados e cadastrada em cada uma das feiras da semana. Na terça são 48; na quarta, 50; na quinta, 53; na sexta, 39; no sábado, 42; e no domingo, 45. Os dados são apresentados de forma global, sem distinção por sexo. Fonte: SEMAGRIC.
O cadastramento das feirantes é realizado pela Secretaria Municipal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Porto Velho (SEMAGRIC). A última atualização dos dados foi realizada em dezembro de 2024.  Gráfico: Bruna de Paula

As feiras estão espalhadas pelas regiões da cidade, fechando ruas ou avenidas para a sua realização. Por conta disso, os trabalhadores levam sua própria água e apenas a feira de domingo,  do Cai N’água, possui banheiro próprio. Nos demais locais são instalados banheiros químicos. Entretanto, nem todas o utilizam.“É difícil para as mulheres. Eu não uso banheiro químico, quando eu chego tá limpinho, mas não há limpeza adequada durante o dia. Prefiro me organizar em casa e levar água e outros itens necessários. Apenas no domingo tem um senhor que a gente paga 2 reais e ele limpa o banheiro”, explica Gerliane Lima. 

Depois da pandemia

Segundo o especialista em Economia e professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Otacílio Moreira de Carvalho Costa, o empreendedorismo das mulheres teve um crescimento significativo após a pandemia de Covid-19, com diversas mulheres se tornando a base da renda de sua casa. “A economia enxerga com bons olhos e cada vez mais a mulher tem atuado em todos os espaços. No mundo dos negócios, a  mulher tem expertise e mantém a qualidade do produto, tem esse zelo com a higiene, o cuidado com os alimentos que são consumidos ali na própria feira livre, explica o economista.

As mulheres feirantes são exemplos de resistência e superação. Suas histórias são um testemunho da importância do comércio e da produção popular como um espaço para dignidade, recomeço e seguir em frente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Ir para o conteúdo