Violência na educação de crianças tem origem religiosa
Por Marcos Miranda | Orientação: Thales Pimenta
O período da pandemia aumentou o número de casos de violência contra crianças e adolescentes ou, pelo menos, de registros de denúncias, subindo de 70%, em 2019, para 77%, em 2020. A criança está passando mais tempo em casa. Em muitas famílias, isso significa que ela está mais vulnerável a violências, justamente no lugar que deveria lhe trazer segurança. A ausência do contato com a escola e com vizinhos, familiares, amigos, serviços de saúde etc. reduz a percepção da violência e as possibilidades de denúncia.
O professor de psicologia Paulo Endo, da Universidade de São Paulo (USP), afirma que “a criança, como qualquer outra pessoa em uma relação assimétrica de poder, está em uma situação potencialmente violenta”. A condição de total dependência dos pais permite que o adulto decida se vai violentar ou não a criança. Se será excessivo ou não.
Não é surpresa que as agressões físicas, usadas como “pretextos” para educação de crianças e adolescentes, estejam presentes na história e na cultura. No artigo “Um monstro esconde-se em casa: a violência contra crianças e adolescentes”, escrito pela advogada Danielli Freitas para a Jusbrasil, a autora retrata os tempos de colonização do Brasil numa tentantiva de entender a relação do colonialismo com os maus tratos na infância.
Freitas faz referência ao livro “Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas”, obra importante de Viviane Guerra, assistente social da USP e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Criança (LACRI). Guerra explica que os indígenas do Brasil, por exemplo, não batem nos filhos por nenhum motivo. Não açoitam suas crianças. Isso não é comum na história do Brasil Pré-Colonial. Dentro de suas aldeias, os indígenas entendem que ao chamarem a atenção de suas crianças, às vezes de maneira ríspida, elas podem sentir muito mais do que quando apanham.
Isso nos instiga a refletir sobre como e onde essa construção social do educar através da palmada teve início. Danielli Freitas relembra que os sacerdotes da Companhia de Jesus, em 1549, costumavam punir com palmatórias e tronco quem faltava à escola jesuítica. Para eles, o carinho, os vícios e os pecados eram semelhantes e deveriam ser combatidos da mesma forma, com violência e castigos, ensinando às crianças que a obediência aos pais e às demais figuras de autoridade era a única maneira de escapar da punição divina. Esse é um dos motivos que resultaram no abandono dos indígenas ao estudo e às doutrinas. A educação do sistema jesuítico não correspondia à que recebiam em seus grupos étnicos.
Publicada em 2014, a Lei 13.010, conhecida como Lei da Palmada, proíbe os pais e responsáveis de aplicarem castigos físicos ou tratamentos cruéis e degradantes para educar crianças e adolescentes. É um marco na história do Brasil, que por muito tempo centrou sua educação em palmadas, algo que era não apenas aceito, mas também estimulado. O termo “palmada” torna leve o que, de fato, é grave. Muitas crianças e adolescentes sofrem agressões dos mais diversos tipos, todos os dias, que vão de violências psicológicas a abusos físicos e até sexuais. Aquelas, por sua vez, também deixam cicatrizes que os acompanham até a fase adulta.
Em um depoimento para seu canal do YouTube, a digital influencer Evelyn Regly revela que, aos 36 anos de idade, ainda não esqueceu os momentos de violência que viveu na infância. Sensações de medo, raiva, dor e fortes emoções estão presentes por todos os momentos do vídeo. Ela reforça que os maiores índices de violência infantil estão ligados à família e que seu caso foi, também, normalizado pelos familiares. Insegura e desconfiada de todos, Evelyn conta que está sempre alerta nos lugares a que vai, prestando atenção não só ao seu filho, mas também a crianças que nem conhece.
Adversidades e traumas vividos nos anos iniciais da vida podem resultar em uma variedade de problemas. Entre eles, depressão, abuso de drogas, problemas de saúde e infelicidade geral, mesmo anos depois da cessação dos maus-tratos.
É muito comum que as crianças coloquem no corpo as emoções que ainda não sabem expressar. “Excepcionalmente, a criança chega ao serviço de saúde com queixa de violência. Podemos suspeitar dela por meio dos sinais, físicos ou não, pelo olhar e escuta atenta, já que a criança pode se mostrar com medo”, relata a pediatra Juliana Monteiro.
Impor limites à criança por meio do diálogo e da negociação é um processo educativo e disciplinar demorado e muito mais trabalhoso do que um tapa ou uma chinelada, mas tem efeitos positivos e sustentáveis no longo prazo. E o que é mais importante: demonstra o respeito que a criança merece como ser humano, igual a cada um de nós.
Buscar ter calma em situações de estresse e sempre tentar conversar com as crianças na mesma altura dos olhos, mantendo abertos os canais de comunicação, são apenas o início de uma educação sem violência. É também importante jamais recorrer a tapas, insultos ou palavrões. Procurar expressar de forma clara quais são os comportamentos inadequados da criança é uma das estratégias de educação sem violência.
Através da reeducação das famílias, problematizando e, ao mesmo tempo, desconstruindo essa cultura da violência pela educação, é que se pode fazer com que as crianças sejam educadas sem o uso dos maus-tratos.