Eu não mereci ser estuprada*
por Kellen Soares
+ Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil
Eu nunca pensei que isso pudesse acontecer comigo. Ele deveria me defender. Mas tudo começou quando eu era muito pequena, com apenas cinco anos. Ele cuidava de mim quando mamãe ia trabalhar, porém, logo que ela fechava as portas de casa, meu coração acelerava. O medo já era visível. Incapaz de reagir a qualquer reação daquele homem, eu hesitava um olhar ou qualquer proximidade. O sorriso e a alegria de viver já não existia. Só o medo.
Com uma faca na mão, ele sempre falava: “se sua mãe ficar sabendo, eu mato vocês”. Mais medo. “É só um carinho”, dizia ele. Esta tortura durou por anos, sem que ninguém percebesse o meu sofrimento. A menina desobediente. A menina estranha. A menina sem amigos que não reage a nada. Quantas vezes pedi socorro… a menina de cabeça baixa só queria ajuda. Minha mãe nunca percebeu.
Ele me levava para o quarto e me trancava lá dentro. Era horrível. Eu queria gritar. Morrer. Acuada. Forcada. Não queria! Mas nada adiantava falar, pedir ou implorar. Ele era um homem muito maior que eu. E eu não tinha forças para tira-lo de perto de mim.
Fui estuprada. E não foi por um estranho; meu tio foi o monstro. Ele me bateu. Ameaçou. Estuprou! Me senti suja imunda, eu tinha nojo de mim. Tentei suicídio e mesmo assim ninguém percebeu. Depois disso, muitos outros abusos passaram a ser constantes.
Piadinhas, grosserias na rua, ofensas verbais, ameaças de colegas da escola. Sempre acontecendo algo desagradável. Aos meus vinte cinco anos, novamente. Terrível. O que sempre temia. Um marido possessivo e ciumento. Eram murros, chutes. Fui estuprada diversas vezes. Ele se achava meu dono, e eu não sabia até onde poderia negar.
Sobre poder de uma arma, eu era obrigada a fazer o que ele queria. Quinze anos sofri calada. Os abusos aconteciam na rua e até na presença das crianças. A humilhação era constante. Ouvi da família e amigos que a culpa era minha. Chorei muitas noites.
E não, eu não usava roupas provocativas e também não causava nenhuma situação para tanta agressão. Fui novamente roubada dos meus sonhos e direitos, o direito de escolha. Tive muitas dúvidas do que fazer: contar para quem? Alguém acreditaria em mim? Iriam prendê-lo ou ele ficaria livre para me agredir novamente? Liberdade que eu não tinha.
Mas eu tomei coragem. Denunciei, sim! Mesmo com medo e com vergonha. Ele não poderia ficar impune como meu tio. Nós mulheres não podemos mais ficar mais caladas! Denunciar inibe a ação dos agressores. Dos estupradores. Em todo momento, chorei; mas não só só de tristeza. Por fim, chorei de orgulho, orgulho de mim, pela coragem de ir à delegacia e denunciar.
* Este texto fictício contém diversos acontecimentos relatados pelas três fontes do áudio, durante a construção desta produção. Portanto, constitui-se como um substrato da realidade.


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