Epifanias migrantes
por Sandro Colferai*
Numa terça-feira à tarde cheguei cedo à escola do meu filho para pegá-lo. Como todas as crianças estavam por ali, também esperando por seus pais, acabei entrando na conversa deles, sobre Pokémon, Dragon Ball alguma coisa, Minecraft e assemelhados. No meio da conversa com a criançada entre 08 e 12 anos, começaram a perguntar umas para as outras onde tinham nascido. Eu, do alto dos meus 41 anos, e toda uma experiência migrante do Sul do país até o Norte, me vi surpreso ao ouvir as respostas: a maioria nasceu em Vilhena, alguns outros em Porto Velho, Ji-Paraná, Cacoal e Ariquemes.
Se eu ouvia de meu pai que índio bom era índio morto, quero que meu filho cresça em um meio que respeite as diferenças, reconheça os erros do passado e aprenda com eles
A surpresa não me veio pela constatação do lugar onde as crianças nasceram, mas pela epifania que se revelou: chegamos enfim a uma geração que tem suas primeiras lembranças geradas na terra que um dia foi estranha a todos que por aqui chegavam. Sim, a mesma Rondônia que foi do Eldorado, agora é a terra natal de crianças filhas, em grande parte, de pais que também nasceram por aqui, ou chegaram ainda crianças. Isso faz com que as memórias afetivas que muitos de nós guardamos do sul e do sudeste para eles estejam inteiramente ligadas a Rondônia.
Não se trata de algo menor. Bem pelo contrário, é fundamental para o que será o lugar em que vivemos nas próximas décadas. O modo como esta memória se constrói nas nossas crianças é índice do que será em breve Rondônia, e a porção do Norte brasileiro ocupada desde a década de 1970. A Rondônia que eu conheci quando criança era a Rondônia dos aventureiros, dos sitiantes, das motosserras, dos jagunços e dos índios que atrapalhavam a abertura dos lotes. A Rondônia que meu filho está conhecendo é urbanizada, de fácil locomoção, de plena comunicação, com energia elétrica permanente.
Chegamos enfim a uma geração que tem suas primeiras lembranças geradas na terra que um dia foi estranha a todos que por aqui chegavam
Nas salas de aula improvisadas que frequentei na minha primeira década de vida, quase todos os dias havia colegas novos, e as perguntas mais frequentes eram – nesta ordem – qual sua idade e de onde você veio. E as respostas não podiam ser mais variadas: a idade era quase impossível de prever e o lugar de onde vieram – sempre fora de Rondônia – ainda mais improvável. Minhas lembranças são boas, mas certamente apenas por ter, naquela época, três décadas a menos do que tenho agora.
Das ruas poeirentas da minha infância, com caminhões carregados de toras de mogno e cerejeiras e às escuras durante as noites quentes, até a Vilhena de meu filho, muita coisa mudou. Mas é preciso que as coisas sigam mudando, pois ao contrário de crescer em uma sociedade que vê a natureza como obstáculo, preferiria vê-lo se tornar adolescente e adulto em um lugar em que se busca a convivência e a manutenção das florestas.
Se eu ouvia de meu pai que índio bom era índio morto, quero que meu filho cresça em um meio que respeite as diferenças, reconheça os erros do passado e aprenda com eles para fazer deste um lugar melhor, tão bom quanto serão as memórias afetivas de uma infância menos penosa que aquela que nós, crianças migrantes, tivemos.
* Professor no Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

