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ESPINHOS QUE ACOMPANHAM: trans revelam como exclusão leva à prostituição

Duas mulheres abrem o baú de histórias e contam sobre a dureza de suas vidas desde a infância

por Camila Pinheiro | Orientação: Larissa Zuim

Cerca de 2% da população adulta brasileira é transgênero ou não binária. Isso que dizer que se identificam com um gênero diferente daquele que lhes foi atribuído ao nascer ou não se percebem como pertencentes exclusivamente ao gênero feminino ou masculino, de acordo com artigo científico da Universidade Estadual Paulista (UNESP), publicado na revista Nature Scientific Reports.

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Os dados revelam que muitas pessoas trans abandonam a escola antes de concluir a educação básica por conta do preconceito. Por não receberem o apoio da própria família, sendo até expulsas de casa, e não terem oportunidade no mercado de trabalho, muitas acabam indo para a prostituição. Em Porto Velho, algumas trans encontram na prostituição a única saída para essa exclusão.

Esquina entre Avenida Rio Madeira e Rua Tucunaré tem um conhecido ponto de prostituição. Fonte: Google Maps
Esquina entre Avenida Rio Madeira e Rua Tucunaré tem um conhecido ponto de prostituição. Fonte: Google Maps

Ao buscar mulheres trans que trabalham com programas sexuais na cidade, a primeira dificuldade é encontrar pessoas dispostas a falar. A pergunta principal era simples: qual a história da sua vida? Mas, mesmo não sendo necessária a identificação, a negativa era a resposta unânime: “não vou falar”. A procura por essas profissionais, nos leva a um local conhecido da cidade: a avenida Rio Madeira, na divisa entre os bairros Nova Porto Velho e Lagoa. A região é famosa por possuir vários motéis e as garotas de programa são facilmente visíveis por lá.

No primeiro dia, no sábado, não tivemos sucesso. Foram 3 abordagens, que não surtiram efeito. Mas isso era esperado, pois os finais de semana são os dias em que elas obtêm maior renda e, por isso, não dedicariam seu tempo concedendo uma entrevista. No segundo dia, uma quarta-feira, sorte. Circulando de carro pelo bairro Lagoa, numa esquina sem iluminação, em meio a algumas árvores, uma pessoa que, apesar da escuridão, se destaca: Louisa.

LOUISA: UMA ESTRELA QUE NADA CONSEGUE APAGAR

Louisa é uma mulher trans de 36 anos, que trabalha na prostituição há 17. A sua história não foge à regra, o seu lar era desestruturado e teve até intervenção do conselho tutelar. “Minha estrutura familiar. Meu pai e minha mãe não deram certo. Minha mãe gostava de farra e deixou a gente tudo pequenininho. Meu pai era um homem trabalhador e não tinha tempo de cuidar da gente. Denunciaram a gente e eu morei um bom tempo na casa do conselho tutelar”, contou.

A moradia em abrigos durou 2 anos. Não foi fácil. Por ter um jeito mais afeminado, sofreu muito preconceito por parte dos meninos. Ser chamada de “viadinho” e excluída nas brincadeiras era rotina. O preconceito também veio da família. “Meu pai nunca aceitou. Até hoje sinto que ele fica incomodado perto de mim, por eu estar com o jeito mais feminino do que antes. Eu já nasci assim, sabe? Com um jeitinho mais afeminado, procurando brincar mais com mulher do que com homem. Ali, eu já sabia que incomodava ele. Quando a gente fazia alguma coisa errada, eu sempre apanhava mais. Eu sempre senti que ele tem um rancor por eu ser assim”, revelou.

Os cuidados pessoais se tornaram mais presentes para Louisa quando começou a trabalhar. Tomou hormônio e ficou “bonitinha”, como disse. Foi aí que surgiu o convite para deixar Porto Velho. Chegou em São Paulo aos 18 anos, em janeiro de 2006. Ela lembra detalhadamente do primeiro programa: “Estava na Avenida Industrial, em Santo André, numa rua que se chama Curva dos Pintos. Estava lá há uns 3 dias, e não tinha conseguido nada. No quarto dia, parou um caminhoneiro. Um loirão bonito, sabe? Aí conversou. Não me lembro se cobrei 20, mas sei que terminou em 5 reais. Eu, inocente, fui lá, porque estava com fome, né”.

Comprei dois pacotes de Fandangos para matar a fome. E nem deu para comprar o suco”.

Por um tempo, Louisa morou em uma casa de cafetina. Mas não foi fácil. Segundo ela, no começo é tudo maravilhoso, mas com o tempo, os abusos aconteceram. Ela tinha que trabalhar para pagar dívidas como passagens, alimentação. Também apanhava. Em uma das vezes, ela ficou sem voz por causa de um tapa que levou. O silicone industrial que tem no corpo também foi inserido nesse período. Mais um débito que teve que pagar.

O desânimo em ficar na casa veio com a morte de uma colega: “Eu tinha uma amiga, que até hoje eu guardo ela nas minhas memórias. Sheila Strass era o nome dela. Um dia, ela teve uma overdose. O cliente bateu no portão, deixou ela lá. Um homem ainda tentou ajudar, correu atrás de gente para socorrer, mas não adiantou”, lembrou. Depois disso, Louisa foi ameaçada pela cafetina, precisando fugir por não querer assumir uma dívida de uma colega que também optou por sair daquele lugar.

O preconceito não era só em casa, mas também na rua. “Tinha uma policial feminina que me perseguia. E ela só parou quando eu fui presa”, disse. Louisa estava num hotel, com uma moça que selecionava meninas para irem para a Europa, quando a policial entrou. Das 6 mulheres que estavam na sala, ela foi a única a ser levada. No dia seguinte, parou numa cadeia de Osasco.

O processo de transição não foi fácil. Com Louisa deu tudo certo, mas muitas meninas já morreram por isso. Uma pílula por dia já basta, mas tinham meninas que tomavam 7. Depois, colocou silicone industrial. Mas ela não aconselha a fazer o procedimento.

Louisa tem apenas a prostituição como sustento. Ela relata sentir vontade de mudar de profissão, mas até hoje não achou algo que consiga exercer e ter a mesma renda. Louisa já quis ter um homem que pudesse gostar, ter uma casa para cuidar e ter filhos. Ter “a vida de uma mulher normal”, como falou. Mas esse sonho morreu. Ela pensa que é difícil ter um relacionamento hoje em dia. Agora o sonho é outro: voltar a estudar. Já quis ser advogada, contadora, pois sempre foi boa em matemática. Depois, concluiu que gosta de ajudar as pessoas e os animais. Quer ser assistente social.

KAREM: TRAUMAS TRANSFORMADOS EM FORÇA MOTRIZ

Karen Oliveira não trabalha mais nas ruas de Porto Velho. Há alguns anos ela fundou a Comunidade Cidadã Livre (COMCIL), grupo que luta pelo direito das pessoas LGBTQIAPN+ e contra a intolerância. A sua linha de trabalho é bem ampla: educação, saúde, segurança pública, trabalho e redução de danos de álcool e drogas e silicone industrial. Ela é uma mulher trans de 54 anos que já superou a expectativa de vida de um grupo que é de 35 anos, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

Já fui profissional do sexo. Venho da prostituição, do sistema prisional, da rua. Sou uma enciclopédia da exclusão”, contou.

Karen representa mulheres trans pelo COMCIL. Fonte: Arquivo pessoal
Karen representa mulheres trans pelo COMCIL. Fonte: Arquivo pessoal

A sua entrada no mundo da prostituição aconteceu semelhante ao ingresso de outras mulheres trans do país, ao ser excluída da sua residência pela sua própria família. “Entrei nesse meio quando deixei de ter um lar e passei a ser da rua. Precisava trabalhar. Não aguentava mais dormir na praça. Você imagina Porto Velho há 40 anos? Naquela época, tudo era mais difícil. Tinha a questão do garimpo; então, se fortalecia muito a questão da prostituição. E eu tinha que me virar”, explicou.

A sua vida mudou quando conheceu uma pessoa. Foi morar com ele, saiu da prostituição e começou a trabalhar em um salão de beleza. Em meados dos anos 2000, foi convidada para o Encontro Norte de Travestis e Transexuais aconteceu em Porto Velho. A partir daí, se inseriu nos movimentos sociais. Em 2010, ingressou em algumas ONGs, mas acabou sendo excluída por não aceitar que gays e lésbicas falassem pelas pessoas trans. Em 2012, fundou a COMCIL.

Ao se encarregar dessa comunidade, percebeu que a prostituição é imposta à população trans pela sociedade. “No momento que violam o meu direito de estar num ambiente escolar, não tendo escolaridade para ter um futuro melhor, o que me sobra? A prostituição”. Para ajudar as pessoas trans que desejam sair da prostituição, Karen as incentivava a estudar. Muitas pensam que o dinheiro supre todas as necessidades, mas esquecem da vida na terceira idade, por isso frisa a importância de buscar outra profissão, segundo a ativista.

Karen também já organizou cursos para pessoas trans e mulheres vítimas de violência doméstica. Ela já organizou ações de retificações para ajudar trans a alterarem seus nomes nos documentos. Quando perguntada sobre uma estimativa de quantas pessoas já auxiliou, Karen não sabe responder. Ela diz que nunca parou pra pensar nisso, que nunca fez essa conta.

Morcegada

Site jornalístico supervisionado pelo professor e jornalista Allysson Viana Martins, vinculado ao Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

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