RETIFICAÇÃO DE NOME E GÊNERO: mais de 25 trans realizaram o procedimento em Rondônia
“Foi como tirar uma máscara e me afirmar como cidadão”
Por Joshua Lacerda
A alteração de nome e gênero, sem a realização de cirurgia de redesignação de sexo, laudo psiquiátrico ou ação judicial foi facilitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tornando o processo mais acessível às pessoas transgênero desde 2018. 29 pessoas trans em Rondônia, de 2018 até agosto de 2023, realizaram a retificação em seus registros civis, segundo a Associação de Registradores Civis das Pessoas Naturais do Brasil (ARPEN-BR).
A mudança era um sonho de muitos e se tornou uma realidade, como no caso da estoquista de depósito, Angel Lopes, de 22 anos, que realizou a alteração em 2019. Ela conta que ter um nome vai além de uma simples identificação, é a validação da sua identidade para sociedade e enfatiza a importância do processo de retificação de prenome e marcador de gênero na sua vida.
É uma questão de ter sua própria identidade validada e se enxergar como pessoa com direitos e não uma fantasia”, comentou.

Assim como Angel Lopes se sentiu realizada após o processo, o advogado Dionísio Descry também experimentou da mesma sensação. Ele é o primeiro homem trans a ter o nome social registrado na carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Rondônia.
Dionísio já trabalhou na área de retificação, auxiliando pessoas transgênero, e cita que o processo é uma conquista enorme para comunidade, sobretudo porque faz com que uma pessoa trans se sinta real nesse mundo. Antes da retificação, era como se usasse uma máscara, na qual não se reconhecia como pessoa, afetando sua autoestima.
Foi como tirar uma máscara e me afirmar como cidadão, como me dar voz, era como um resgate a mim mesmo”, comentou.
Não ter o nome ou o gênero respeitado é uma das muitas formas de violência que uma pessoa trans pode sofrer. Quando ainda não há retificação dos documentos, existem constrangimentos que são humilhantes e violentos, como a experiência vivida pela estudante de Administração, Olivia Oliveira.
“Quando eu ia para entrevista de emprego, tinha que ser apresentada pelo meu dead name (nome morto), por conta dos meus documentos não serem retificados. Era uma situação muita chata, pois eu tinha que explicar que eu era uma pessoa trans e como devia ser tratada, e algumas empresas não compreendiam”, comentou.
Olivia é uma das pessoas que o sonho também se tornou realidade. Hoje com seus documentos retificados, enfatiza a importância da mudança na sua vida como mulher trans, pois comprova sua existência e legítima seus direitos civis. Para ela, a decisão do STF representa uma vitória aos direitos das pessoas transgênero.
Já Dionísio destaca que o mérito dessa mudança deve ser atribuído aos movimentos LGBTQIAP+. Apesar do processo agora ser mais acessível, ainda existem obstáculos significativos a serem superados, especialmente para pessoas transgênero em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Muitas delas não conseguem acessar esse direito devido à falta de recursos financeiros. Em Rondônia, a retificação pode custar entre R$ 121 e R$ 265. Além disso, após a retificação no cartório, é necessário alterar todos os documentos pessoais, o que torna o processo ainda mais caro.
Esse é um dos impedimentos que afasta as pessoas transgênero do processo, o outro é a falta de informação. Mesmo que a retificação seja mais acessível, muitas pessoas trans ainda não sabem que é de direito seu realizar a alteração de nome e gênero legalmente. Esse é o caso do barbeiro, Olliver Rocha, de 20 anos. Ele realizou a sua transição de gênero há menos de dois anos, mas não sabia que era possível realizar a mudança de nome até agosto de 2023. Olliver teve ciência do processo por meio de uma campanha da Comunidade Cidadã Livre (COMCIL), juntamente com o Núcleo de Direito da Faculdade Católica de Rondônia (FCR).
O jovem deu entrada no seu processo em setembro de 2023. Quando seu registro civil for retificado, será um dia muito importante na sua vida, a realização de um sonho.
Não ter meus documentos condizentes com meu gênero afeta muito minha autoestima e não sou levado a sério no meu trabalho; é um constrangimento cotidiano, me frustra muito. Quando eu puder ouvir uma pessoa chamando meu nome de acordo com o documento, ou até mesmo quando alguém for confirmar um PIX, com nome Olliver, será uma sensação única, será um dia que me marcará para sempre”, comentou.
DIREITO CONQUISTADO, MAS NÃO GARANTIDO
A retificação de nome para pessoas trans é uma necessidade para melhorar o acesso à educação e ao trabalho, um passo para cidadania na sociedade. Embora o direito tenha sido conquistado e ampliado pelo STF, ele não é sempre garantido, e é nessa falta de garantia que surgem as políticas públicas, em prol da luta da comunidade trans. Em Rondônia, a COMCIL é um grupo coordenado e fundado pela ativista social, Karen Oliveira, que luta pela defesa dos direitos das pessoas LGBTQIAP+.
Mulher trans, travesti, Karen é formada em gestão pública e através da COMCIL organizou um projeto que atua como política pública. Em parceria com a FCR, auxilia pessoas trans na mudança de nome e gênero no estado desde 2019. A intenção é garantir direitos e reconhecimento da identidade de gênero das pessoas trans, permitindo que elas sejam reconhecidas de maneira autêntica e justa na sociedade. “O acesso à retificação para pessoas trans é como um corredor enorme com várias portas, é a promoção da sua existência como travesti, mulher trans e homem trans”, comentou Karen.
A ativista explica que o projeto vem como forma de promover a gratuidade no procedimento realizado pelo cartório, para pessoas transgênero em vulnerabilidade socioeconômica. Além disso, é uma forma de informar a comunidade trans em geral que é possível realizar a alteração de nome e gênero, como foi o caso de Angel Lopes, Olivia Oliveira e agora Olliver.
Os números podem parecer não muito expressivos, em relação à quantidade de retificações realizadas de 2018 até agosto de 2023. Mas elas não expressam a mudança que é na vida de cada pessoa e naquelas que estão a o seu redor. Além disso, os números poderiam ser menores sem a atuação COMCIL, pois das 29 pessoas trans, boa parte foi auxiliada pela parceria com FCR.
A informação da retificação para pessoas trans não recebe atenção necessária do poder público no estado. Isso afasta mais ainda esses cidadãos da sociedade, pois não existem divulgações e campanhas dos órgãos públicos sobre o processo. É através de ações como a da COMCIL que travestis, mulheres e homens trans têm seus direitos garantidos.
COMO REALIZAR A RETIFICAÇÃO EM RONDÔNIA
As pessoas trans que moram no estado de Rondônia e têm interesse em realizar o procedimento de alteração de nome e gênero podem ter auxílio da Comunidade Cidadã Livre (COMCIL). Em parceria com a Faculdade Católica de Rondônia, eles ajudam no processo, principalmente de pessoas transgênero em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Mesmo que você não seja uma pessoa trans nessa situação, o grupo pode lhe ajudar com orientações.
O atendimento acontece de segunda-feira a sexta-feira, das 8h até 12h. Para o procedimento, os documentos solicitados são:
- RG
- CPF
- Carteira de Trabalho
- Comprovante de Residência
A outra forma de realizar a retificação é indo diretamente ao cartório em que foi registrado. Ao informar pelo desejo da mudança de nome e gênero, o local indicará a lista de documentos indispensáveis previstos no Provimento nº 73/2018, como: certidão de nascimento; RG; CPF; título de eleitor; e comprovante de residência. Se o pedido for realizado em cartório diferente daquele em que foi inicialmente registrado, o processo será remetido entre cartórios para averbação pela Central de Informações de Registro Civil (CRC), o que gera uma cobrança da taxa de remessa.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) garante esse direito a todos cidadãos brasileiros, com ênfase para as pessoas que mais precisam desse recurso, as pessoas transgênero. Portanto, todos os cartórios são obrigados a oferecer o serviço.
não tem como descrever a felicidade que é finalmente se sentir você! gostei muito da matéria, conteúdo importantíssimo.